sexta-feira, 27 de junho de 2008

O QUE MESMO, DIGNIFICA O HOMEM?

* Publicado no Jornal Diário da Manhã em 23.06.08

Não tenho dúvida: é a capacidade de se reconhecer filho de Deus e o próximo como a si mesmo. Acredito, por isto, na dignidade, na sociabilidade e na perfectibilidade enquanto características essenciais da pessoa humana, concordando com São Tomás de Aquino. Não acredito, portanto, que alguns já nasçam predestinados a uma má índole. Segundo São Tomás, “a pessoa humana tem uma perfeição espiritual que se manifesta através da razão. A inteligência, conhecendo os caminhos, tenderá a busca da virtude, do bem”.
Assim, partindo de princípios neotomistas, recorro ao tema dignidade humana para discorrer um pouco sobre a questão da infância e da adolescência.
Dezoito anos após a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, enquanto Lei Federal, as medidas previstas ali estão longe de serem cumpridas. E não se diferem do que está previsto na Constituição Brasileira. Se fossem respeitados, ECA e CF serviriam para prevenir a entrada de crianças e adolescentes na criminalidade e para recuperar quem aí se envolveu. Todo aparato institucional em termos de programas, conselhos de direitos, órgãos de defesa e políticas públicas voltadas para esta questão têm sido ineficientes; mas existem e custam caro, inclusive em termos financeiros. A sociedade não se cansa de insistir na mudança da idade penal. Não quero passar por este viés de reflexão.
Quero aqui, é discordar da forma com que é tratada a questão do trabalho. Da idéia purista de que “o trabalho dignifica o homem”, mas que não pondera que o trabalho não é uma exclusividade material ou física; ele também se resulta de atividade afetiva (emocional) e intelectual (cognitiva). Esta idéia é prova inconteste de que Marx estava certo ao afirmar que “a teoria se torna força material quando difundida nas massas”; literalmente, neste caso, pois esta idéia de dignidade pelo trabalho, rende produtividade e discursos politiqueiros. Como a questão de crianças e adolescentes no Brasil.
Comecei a trabalhar aos catorze anos, por hobby, mas sempre levando a sério. Meu filho Marcelo também. Sou workholic, como meu filho Marcelo e meu pai, que trabalha como quem tem que bater o ponto, aos setenta e dois anos e desde os oito. Defendo menor jornada de trabalho e aumento na idade mínima de admissão ao mercado, desde antes da universidade. Não por preguiça, mas pelo princípio colocado no início deste artigo e que venho ao longo de minha vida, reforçando a cada dia, quanto mais utilizo minha capacidade crítica.
É nos compêndios da Economia que busco justificativas para este posicionamento. É a Economia, uma ciência, nada tem a ver com a solidariedade. Isto torna a idéia menos absurda, mais respaldável, pois economistas são pragmáticos, atentos ao mercado, não às utopias.
Marcio Pochmann, Economista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1984) e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (1993), nos diz que “continuamos discutindo as condições de trabalho como herdeiros do capitalismo do século XX”. E ainda, que “é preciso considerar que estamos diante de uma nova possibilidade técnica de organização do trabalho”, com jornadas diárias menores e ingresso no mercado de trabalho aos 25 anos. Antes, segundo ele, “a pessoa deve ser totalmente integrada a uma educação que deve ser recebida ao longo de toda sua vida, diante da complexidade da sociedade contemporânea”. Acho-o bacana demais; para mim, dezoito anos é uma boa idade para os estágios, já que realmente nem todas as pessoas querem ir para a universidade e muitas optam por cursos técnicos já no nível médio.
A justificativa de que jovens com vulnerabilidade econômica precisam trabalhar, contraria seus direitos, de acordo com o ECA, no artigo 4º, que trata dos deveres da família, do Estado e da sociedade. Justificar que o trabalho é melhor que ficar à toa, é repetir um chavão da era da primeira revolução industrial. Jovem tem mesmo é que estudar, viajar, criar laços afetivos, praticar esportes, cantar, tocar instrumentos musicais, conhecer e aprender danças e outras expressões artísticas, as línguas, as culturas. Tem que ter disciplina, se alimentar bem, dormir suficientemente, ufa! Vale lembrar que etapas “queimadas” na vida da pessoa, jamais são recuperadas. Também não comungo das maravilhas das creches e escolas integrais. É a família que deve criar seus filhos, não o Estado. Devem valer como opção, não condição.
A idéia de um Estado que financia o mercado é pra lá de arcaica, conservadora, fisiologista; como nosso mercado, em geral. O Estado, além dos benefícios e incentivos fiscais necessários ao seu desenvolvimento econômico ainda paga, através do INSS, os estragos feitos ao trabalhador, pelo mercado, em inúmeros casos de aposentadorias precoces por invalidez, advindas de doenças e acidentes de trabalho, além de auxílios doença e tratamentos médicos decorrentes das condições de trabalho, problemas estes que vão das doenças físicas às mentais.

A organização capitalista é voltada para o aumento da lucratividade e não para o desenvolvimento humano, esta é a questão. Até nos programas do atual governo, de esquerda, o Estado paga para o mercado explorar a juventude, que serve de mão de obra barata e ocupa vagas que serviriam para chefes de família. O baixo poder de compra salarial remete famílias inteiras ao mercado de trabalho, aumentando o exército de reserva. E as famílias, quase nunca conseguem garantir aos seus membros, saúde, educação, lazer, moradia e transporte com dignidade mínima, nos serviços públicos, embora os tributos fiscais destinados a garantir estes direitos básicos, onerem mercado e sociedade. O trabalho na juventude é, estatisticamente, motivo de evasão escolar, e esta é a causa da falta de qualificação profissional no mercado. É um ciclo vicioso determinado pela máxima do salve-se quem puder, sem reflexões realmente compartilhadas para mudanças socioeconômicas efetivas.
Sempre comento da distância que existe entre a realidade de um jovem trabalhador que anda de ônibus, que tem que ajudar nas despesas de casa, que depende de si para se educar, se alimentar, se vestir e tudo o mais e o jovem trabalhador classe média, assistido pela família. São realidades muito diferentes as que eles encontram, quando chegam as suas casas. Sempre digo da importância de que toda criança, adolescente e jovem, sem distinção, tenha acesso ao lazer, à cultura, à educação, à saúde, à vida familiar e comunitária, para o seu vir a ser humano, ou este terá sido violentado em sua origem. E ainda, da estigmatização dos jovens dos programas sociais. Nem parece que somos todos filhos do mesmo Pai.
Na verdade, acredito que se pensarmos bem, não permitiremos a entrada de pessoas em formação, no mercado de trabalho, pois este é um campo perigoso, pernicioso mesmo, repleto de maus costumes e de exploração. Além do mais, ao adentrar o mercado, o (a) jovem passa a ser responsável por si, a ir e vir por conta própria; descobre ser dono do próprio nariz; em contrapartida, tem menos tempo para o convívio familiar, para os estudos, o lazer; adquire maus hábitos pessoais e sociais.
Bertrand Russel, em O Elogio ao Ócio, apregoa que “é necessária uma reforma educacional radical para que o conhecimento, o aprendizado e o saber sejam valorizados em si mesmo e para que o ócio, a diversão e o lazer substituam o trabalho como atividades dignificantes”; afirma categoricamente, que “a moral do trabalho é uma moral de escravos, e o mundo moderno não precisa de escravidão”. Russel, nos anos de 1935, já defendia quatro horas diárias de trabalho e dizia que só assim “haverá felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em frangalhos, fadiga e má digestão”.
Esta metanóia necessária, só acontecerá no enfrentamento do desafio ético-programático que nos apresenta este novo milênio, em todos os campos de atuação. Já era sabido à época de Marx, que o próprio capitalismo destruiria o capitalismo, ao impor um padrão de uso da mão de obra assentada em baixos salários, em ritmos intensos de trabalho, e em altas taxas de rotatividade. O caos deste padrão vemos diariamente, no aumento da criminalidade, na perda de valores, na corrupção engendrada por políticos gananciosos e defensores deste modelo.
Segundo os educadores Vigotski e Wallon, “não é a atividade em si que ensina, mas a possibilidade de interagir, de trocar experiências e partilhar significados”. Em Marx e Engels, “a produção de idéias, de representações, da consciência está (...) diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real”.
Daí a importância de refletirmos e fazermos valer mais as nossas leis constitucionais do que nossos preconceitos adquiridos, às vezes, involuntariamente, em forma de “belas mentiras”.

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