Sempre gostei de escrever. Tanto quanto de ler. Este é um exemplo de meus pais e de minha irmã que absorvi prontamente. Papai está sempre fazendo um trocadilho, escrevendo um bilhete, falando uma frase em latim; tem conhecimento sobre quase tudo e de todos os tempos. Mamãe, idem, e se não tem outra coisa, fica lendo bula de remédio, lista telefônica, ou os olhos da gente, ávida, sempre com ares de que é tudo novo!
Meus filhos também lêem muito e gostam de escrever. Não temos obrigação com a televisão, embora gostemos bastante. Minhas crianças se acostumaram mesmo é com pilhas de jornal acumulados, que nunca dispenso antes de ler, ainda que com data vencida... Ler jornais é um hábito. Desde menininha.
Tenho minhas preferências. Não gosto de poluir minha mente nem minha alma com horrores nem com piadas grosseiras, debochadas, embora às vezes leia alguma coisa assim e saiba um bocado dos horrores e deboches que acontecem nesta vida.
Sei apreciar o que é bom,
Como fazer isto, pensei por algum tempo. Sempre estou tão apegada ao que vivo e vivo tão condicionada sempre, meu Deus – e agora? Penso me lembrando da insustentável leveza do ser. Escrevo o que penso e penso ser livre, pois sempre ajo ciente de opções e de conseqüências. Diferencio liberdade de independência e a associo à responsabilidade.
Mas o fato é que escrevo sempre pautada no que leio de outras pessoas. Escrever um tema livre, é assim, me foi dito, escrever com o coração. Minha Nossa Senhora. Escrever com o coração, sempre escrevi. Mas com o coração do mundo inteiro. Com o meu mesmo, nunca pude. Tenho que pensar sobre o que tenho no coração. Sei que tem muito a ver com liberdade.
Não tenho angústia. Não. Angústia tem a ver com insatisfação. Sou muito satisfeita, agradecida. Uma psicóloga disse-me que tenho o limiar de tolerância bastante extenso, amplo. Isto é um problema, pois ser satisfeita não me significa não desejar nada. Explico melhor: tenho consciência de limites (a partir dos meus) e sei que não vou resolver os problemas do mundo; fico abobada e deslumbrada com os constantes arranjos divinos, então sou sempre grata e cheia de satisfação pelo bem que vivo que sinto que ouço que vejo. Mas sei que o mundo não pode ficar como está. Ele pode e deve ser melhor. Tem que ter justiça social, que ser economicamente sustentável, onde a vida seja plena, com todas as suas lutas. E optei por lutar por isto, isto me dá prazer, é condição de existência, sentido de vida: viver melhor!
Pareço ansiosa, mas cultivo a paciência e controlo a euforia. Minha esperança é imensa, embora me sinta cansada, bastante mesmo, às vezes. Mais por questões físicas. A angústia, penso que é uma sensação que limita, uma condição de desesperança, de fraqueza, de amargura constante, de falta de surpresas. Tenho alegrias.
Ah, meu coração... Se escrever o que há nele, vou refletir sobre Lucélia, sobre os possíveis motivos que criam as joanas, as sílvias, vanices e isabelas; sobre os champinhas, os joão hélios. Não poderei deixar de dizer do tempo que falta às famílias, do que é capaz a opressão, das tantas formas de exploração, expropriação e dominação à que estamos sujeitos, todos os mortais. Não poderei me esquecer da Senadora Ingrid Betancourt, há seis anos seqüestrada, para quem não vi ainda um movimento sequer, das mulheres engajadas e combativas de nosso país. Não poderei jamais me perder do tempo, da história...
E não poderei, devido algo que se imiscui aos meus sentimentos de deslumbramento, de medo, de indignação, de contentamento, de desejos, entre cansaços – e que é mais forte do que todos estes. Não sei bem o que é, mas me conduz. Às vezes, me enternece, depois alimenta. Às vezes me confunde, mas não me angustia.
Como escrever o que o coração diz? Coitado. Bate tanto, apanha, nunca para, pouco fala. Vai e vem, ainda bem. Ele mesmo não é livre, tem compromissos; e não pode agora me dizer algo preciso, valioso, que resolva minha necessidade de escrever um tema livre. Ele está condicionado. Mas nem um pouco com angústia. Capota em sorrisos ao lembrar afagos dados, trocados. Encontros, entre desencontros.
Meu coração contém ruas e esquinas, asfaltos e buracos. Ramalhetes, lírios, bilhetes, serenatas. Tardes com sol, tardes com chuva. Tem quartos e chaves e escadas e alicates também. Telas de cinema, sons de violão, saladas, vinhos, pães, amizades e amores. E carne e sangue. Tem noites e manhãs, tédio, remédios reticências. Algumas coisas passam perto da perfeição.
Já vinha mesmo pensando sobre o que tenho no coração, além do prolapso mitral. Percebi que em nome da razão, de tomar jeito, de crescer, de ter juízo, deixei de manifestar muito dos sentimentos que senti, de carinho, de insegurança, de ojeriza. Deixei de me expressar, de dizer que me maravilhei, tanto quanto que me magoei ou que me senti ofendida. Sempre busco São Francisco como referência de modo de vida, mas estive me fazendo de São Bernardo, bebendo óleo como vinho.
Nada como um dia após o outro. Dialeticamente como sempre, a vida, com seus eixos e seus desleixos, em movimento, me ressurge diferente. Em meio às capotadas de meu coração, consigo feitos que me renovam o ser e sigo em frente.
Mas não me engano; não me desconecto do que li, do que vivi, do que senti. Se tiver estilo literário, ousarei encontra-lo. Embora sempre tenha gostado de escrever, as experiências que tive na universidade me castraram um pouco e não tenho tido a oportunidade de ser instruída nesta arte. E sei que orientar é diferente de castrar, de tolher. Orientação é fundamental em tudo, eu acho. Por isso, mesmo o tema sendo livre, não consegui não me ater a fatos, me delonguei, orientada pelo meu coração, que está repleto.
Muito difícil um tema livre, e não é livre minha alma, nem meu coração, condicionados em meu corpo. Sou ser coletivo, histórico, não consigo viver melhor sozinha, nem ser diferente. Talvez não agrade, mas este não é o desafio, embora esta idéia me encante.
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