sábado, 31 de maio de 2008

GARANTIA DE DIREITOS E COMPROMISSO COLETIVO PARA A PAZ

* Publicado no Jornal Diário da Manhã em 23.05.2008

É tempo de compreendermos que a segurança pública implica em muito mais do que controle e combate da criminalidade e da violência. Segurança pública tem a ver com garantia de direitos. Está condicionada por variáveis diversas, é processo multidimensional e deriva do contexto sócio-econômico e cultural da sociedade.

A dimensão que quero aqui colocar, extrapola o âmbito da reatividade. Em 2004, foi divulgado por uma fundação ligada à UNICAMP, a UNIEMP (Fórum Permanente Universidade-Empresa), em parceria com a Secretaria de Estado da Segurança Pública de São Paulo, um estudo, sobre a relação entre o aumento da criminalidade e o desemprego, a estagnação econômica e a queda de renda, analisando “o nível de violência dos delitos versus o desespero econômico de quem os pratica”. Concluiu que a algumas modalidades de crime, corresponde um índice de desemprego de 85%.

Outros estudos relacionam o desemprego de jovens e de pessoas de mais de 40 anos, com a criminalidade, lembrando que os mais jovens têm na falta de experiência, o motivo de serem excluídos do mercado de trabalho e os maiores de 40 anos estão condenados, por este mesmo mercado, à velhice precoce.

Por outro lado, já funciona em algumas capitais brasileiras, a Justiça Restaurativa, e parece-me ser esta, uma prática que pode fazer a diferença na luta contra o círculo vicioso da injustiça e da violência. Na Justiça restaurativa, existe um olhar para o futuro, para a restauração do relacionamento, quer tenha se esgarçado na comunidade, na escola, na família ou no trabalho. Não importa tanto o culpar, o condenar, o delito passado, mas o que poderá resolvê-lo, ser restaurado na situação em foco.

O Dr. Egberto de Almeida Penido, Juiz de Direito em São Paulo, um dos precursores da Justiça Restaurativa, disse no 18º Fórum do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz, que “é muito difícil haver uma paz externa se não houver uma paz interior”. Ele falou sobre não compactuarmos com qualquer violência, inclusive as nossas; falou também sobre as violências veladas e de como o Direito “cada vez mais se afasta do fim a que se destina, que é fazer justiça, e acaba por criar novos conflitos, retroalimentando a desarmonia social” .

Interessante observarmos que nos casos de Lucélia e Sílvia Calabresi e de Isabella com a família Nardoni, por diversas vezes, estas pessoas passaram por serviços de saúde e até de justiça e segurança pública, mas não foram percebidas, através de olhares atentos, profissionais, restauradores, capazes de identificar a dimensão integral da pessoa humana, dos conflitos vividos, das violências diárias, quer fossem físicas, emocionais ou sociais. Para estas pessoas, como para muitas outras infratoras em potencial, não houve delegacia, serviço de saúde, de assistência social, igreja, família, comunidade, colega de trabalho ou vizinho (a) que fosse capaz de perceber e “desmontar a bomba” que carregavam.

Aprendi faz tempo, que ao violar, a pessoa quase sempre já passou por diversas violações.

No caso de Sílvia Calabresi, tendo sido largada ao abandono das ruas, com a perda de sua família, aos cinco anos de idade, é fácil compreender a instabilidade à qual foi exposta e a dubiedade de seu comportamento como empresária bem resolvida, mas caloteira, pessoa caridosa, mas perversa, mãe zelosa, porém opressora. No caso de Anna Jatobá, por eu ser mãe de quatro filhos, imagino o que ela não passava com os dois pequenos, sendo jovem, estudante, convivendo com um marido impassível como Alexandre Nardoni, após ter se imiscuído na relação deste com a mãe de Isabella, já que Anna Jatobá inclusive havia buscado tratamento psiquiátrico e reclamava do choro das crianças, além de já ter sido registrado boletim de ocorrência entre ela e a própria família, em delegacia. No caso de Alexandre, é impressionante como seu pai o defende e o quanto ele, Alexandre, tem certeza de que se “sairá dessa numa boa”. Certamente o pai, advogado, já o tirou de muitas outras situações difíceis, até chegar nesta; por certo Alexandre nunca teve o direito de não se sair bem de uma enrascada.

O fato é que reduzimos muito o foco das atenções no caso das injustiças que vemos e que vivemos; em alguns momentos estamos tão reativos e não percebemos nem mesmo as violências que cometemos, diariamente, em atos e omissões; em outros momentos, assistimos apáticos, imobilizados, sem relacionar o fato à história que o desencadeou e às lutas diárias de todo mundo, não percebendo o outro como semelhante; e em outros momentos ainda, nos damos o direito do julgo, prontos para jogar pedra.

O que mais falta não é o rigor da lei, mas a efetividade dela. O Estado não pode ser poderoso em sua ação coerciva e omisso em sua responsabilidade social. A sociedade não pode continuar reclamando do Estado, como se não fizesse parte dele. A responsabilidade pelo estado das “coisas”, é de todos.

Uma aliança entre Estado e sociedade é fundamental neste momento, e toda a sociedade deve se mobilizar, sem maniqueísmos, buscando relações pacíficas e o enfrentamento político, legal e coletivo dos problemas que incentivam e aumentam a violência e a criminalidade, compreendendo a interface entre estes e, por exemplo, os problemas decorrentes da impunidade e da crise geral por que passam as instituições brasileiras.

O controle rigoroso da arma de fogo, a redução do efetivo nas funções administrativas, a investigação e a ação científicas, a extinção da carceragem nas delegacias e a remodelagem do sistema penitenciário, são procedimentos básicos a uma segurança pública que se proponha redefinir rotinas e instaurar a qualificação, a efetividade e a eficiência dos serviços, mas seu sucesso está intrinsecamente ligado ao sucesso das demais políticas públicas, que podem e devem prevenir as situações desencadeantes da violência e da criminalidade.

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